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O Peixe Pensa – Nós, não

por | fev 7, 2013

O mais recente erro de interpretação midiática a respeito de uma descoberta científica veio na forma de um pequenino peixe conhecido como paulistinha (Danio rerio).

Cientistas japoneses publicaram seu estudo na revista Current Biology, mais precisamente em 31 de janeiro de 2012 (online). Nele, os pesquisadores usaram técnicas de fluorescência química para marcar neurônios em atividade. Basicamente, quando um neurônio é despolarizado – e isto envolve canais de cálcio e envio de sinais elétricos entre as células –, ele passou a emitir luz em um comprimento de onda capaz de ser captado por câmeras especiais.

A larva de paulistinha foi usada porque seu corpo é transparente, o que permite ver tudo lá dentro, inclusive o pequeno cérebro do animal. Desta forma, foi possível verificar e filmar a atividade neuronal em tempo real, com o peixinho vivo.

Uma das experiências mais interessantes foi feita com um paramécio, um protozoário que serve de alimento para peixes. A atividade cerebral do paulistinha foi filmada enquanto o paramécio nadava perto dele. O mais interessante nesse experimento foi que o sinal luminoso no cérebro do peixinho dançou no mesmo ritmo que o paramécio, mas do lado oposto ao olho. Em outras palavras, se o paramécio se movia perto do olho direito do peixe, o sinal aparecia no hemisfério esquerdo do cérebro.

A imagem abaixo foi extraída do artigo científico e mostra um esquema que explica parte do experimento:

Analisando o experimento, e sobretudo o próprio artigo científico, fica claro para qualquer um que o time japonês filmou a atividade elétrica do cérebro quando estimulado por fatores externos.

Pois bem. Se é assim, por que a mídia anunciou o fato dizendo que era a primeira vez que cientistas conseguiam filmar pensamentos.

Pensamentos?

Ou isso é falta de bom senso, ou necessidade de dramatizar a notícia, ou é burrice mesmo.

Será possível que alguém é capaz de acreditar que é possível filmar pensamentos?… Infelizmente sim, porque não apenas a ciência é mal interpretada por quem não a conhece, mas também o próprio conceito das coisas é ignorado.

Pensamento é algo abstrato, imponderável, imaterial, complexo demais até mesmo para ser explicado de forma definitiva. Mesmo os seres humanos, racionais e lógicos, muitas vezes têm dificuldade em explicar o que estão pensando. Portanto, dizer que o pensamento foi filmado é, no mínimo, falta de pensar melhor.

Então, o que os cientistas japoneses filmaram?

Para explicar melhor, basta fazermos uma analogia. Imaginemos que o cérebro é uma televisão. Existem componentes que geram a imagem, outros o som. Alguns cuidam de captar o sinal do controle remoto, outros são circuitos elétricos ou eletrônicos. Há o cabo de força, o da antena e a luz de led indicando se o aparelho está ou não em stand by. O cérebro também tem áreas específicas para diferentes funções, como a visão, audição, saciedade etc.

O que os cientistas japoneses filmaram em tempo real foi a passagem de energia elétrica entre alguns dos componentes da televisão. Por exemplo, quando mudamos o canal.

O que os cientistas japoneses não filmaram foi qual programa estava passando naquele instante, qual era o som, se tinha música ou vozes, quais as cores, se era um desenho animado ou um documentário.

Resumidamente, eles viram a atividade elétrica, mas não o programa. E muito menos de onde veio o programa! Se foi do DVD Player, do canal X ou Y, se veio por cabo ou antena. E mais: onde o programa foi criado? Em um estúdio? Em uma agência de propaganda? Era ao vivo ou a reprise de um filme antigo?… Nenhuma dessas questões pode ser respondida simplesmente analisando a corrente elétrica que passa dentro do aparelho.

Por esta razão, dizer que eles filmaram pensamentos é desconhecer o estudo que fizeram, o funcionamento do cérebro, o pensamento e suas nuances, e a própria natureza imponderável daquilo que ainda não pode ser explicado.

Eles filmaram a atividade elétrica cerebral em tempo real, e isto foi um avanço muito importante. O resto é invenção de quem só quer vender notícia, e com isso acaba criando nas pessoas uma cultura totalmente errada, baseada em conceitos mal compreendidos.

Falar de Ciência é uma enorme responsabilidade, coisa que o Homo sapiens ainda precisa aprender.

Para saber mais, acesse o site da revista Current Biology e leia o artigo:

Real-Time Visualization of Neuronal Activity during Perception

Akira Muto, Masamichi Ohkura, Gembu Abe, Junichi Nakai, Koichi Kawakami

Current Biology, 31 January 2013
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10.1016/j.cub.2012.12.040

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