Como surgiu o mito dos 10% de uso do cérebro.

Papagaios são criaturas intrigantes. Essas aves são capazes de registrar e reproduzir os sons que ouvem no ambiente em que vivem. Algum biólogo evolucionista já deve ter chegado à conclusão de que elas fazem isso como uma espécie de mimetismo social, uma forma de serem aceitas e talvez até se “camuflarem” entre os sons das outras criaturas. Se eles ainda concluíram isso, peço desculpas pela pressa.

Mas não são apenas os papagaios que imitam os sons. Outras aves também fazem isso com muito sucesso. Entre os mamíferos, o ser humano (mais comumente conhecido como Homo sapiens) também possui a habilidade de repetir o que ouve em seu meio e, assim como os papagaios, não sabe o que está dizendo.

Foi desta forma que surgiu o mito, quase uma lenda urbana, de que usamos apenas 10% do nosso cérebro.

E esta ideia é tão difundida no folclore popular que pode ser encontrada em jornais, blogs, livros, revistas e, mais recentemente, no filme Lucy. Não é raro encontrar pessoas que afirmam, inclusive, que Albert Einstein usava mais do que 10% do cérebro. Alguns chegam até a dar números exatos e dizem que ele usava 11, 17, 20 ou até 30%, enquanto nós, reles Homo não muito sapiens, estacionamos nos mixurucos 10%.

Como assim? - pergunta a personagem do filme Lucy (2014), interpretada por Scarlett Johansson, ao descobrir que já usa muito mais do que 10% do cérebro.

Como assim? – pergunta a personagem do filme Lucy (2014), interpretada por Scarlett Johansson, ao descobrir que sempre usou muito mais do que 10% do cérebro.

Por que estou afirmando que isto é um mito? Vamos entender estudando um pouco de história e neuroanatomia (bem pouco, eu prometo).

Nossa história começa com um ganhador do prêmio Nobel de fisiologia, o Dr. David Hunter Hubel (1926-2013). Apesar de ter contribuído com avanços no entendimento do cérebro, o Dr. Hubel afirmava que o órgão era formado por 100 bilhões de neurônios e 1 trilhão de células da glia.

As células da glia podem ser entendidas de forma bastante simplista como as células que oferecem suporte e nutrição para os neurônios. É evidente que o nosso conhecimento a respeito das interações entre neurônios e glia está evoluindo constantemente. No entanto, é preciso entender que, há alguns anos, os neurônios eram considerados a parte ativa e pensante do cérebro, enquanto as da glia não passavam de alguma coisa como estagiários dentro de um escritório, se me permitem a comparação. Em outras palavras, o mérito da supremacia mental do cérebro não cabia a elas.

Agora vamos fazer uma conta simples e descobrir que, naquela época, acreditava-se que os neurônios compunham numericamente apenas 10% do cérebro. Os restantes 90% eram formados pelos estagiários da glia.

Partindo disto, fica fácil compreender o motivo de acharem que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral. Mas se procurarmos algum estudo checando, demonstrando e comprovando esses números, vamos descobrir que ele não existe. Ou seja, os números foram criados a partir da opinião pessoal de um cientista. E, óbvio, esses mesmos números ganharam o mundo porque partiram da boca de um Prêmio Nobel!

Estudos mais recentes feitos no Brasil pelos pesquisadores Roberto Lent, Frederico A. C. Azevedo, Carlos H. Andrade-Moraes e Ana V. O. Pinto mostraram algumas coisas interessantes.

Uma delas é que a contagem mais precisa de neurônios gira em torno de 86 bilhões de células, e não os 100 bilhões que se acreditavam anteriormente. A diferença é grande o suficiente para caber um cérebro de um babuíno nela.

Outra descoberta que o grupo fez foi fixar em cerca de 85 bilhões o número de células da glia, muito menos do que o 1 trilhão que surgiu da cartola do mágico. Então, comparativamente, é quase como se existisse uma célula da glia para cada neurônio.

Imagem de ressonância do cérebro de alguém que apenas repete o que os outros dizem e não pesquisa a origem das informações.

Imagem de ressonância do cérebro de alguém que apenas repete o que os outros dizem e não pesquisa a origem das informações.

Sabendo disso, podemos afirmar com muita convicção que a frase “usamos apenas 10% do nosso cérebro“ não pode mais ser repetida por qualquer pessoa que use, pelo menos, 1% do cérebro.

Alguém poderia dizer:

“Ah, quer dizer então que usamos 50% do cérebro!”

E a resposta seria:

“Não, cabeção. Usamos 100% do cérebro o tempo todo. As células da glia não estão lá para enfeitar as circunvoluções cerebrais. Elas têm uma função muito importante e trabalham o tempo todo.”

E alguém poderia argumentar que apenas os neurônios pensam, e isso é evidência de que não usamos toda a massa encefálica. Mas este argumento depende de muitos pressupostos que ainda estão sendo estudados. Por exemplo, de onde vem a consciência? Ela é uma proteína dentro dos neurônios? Ela é um gene em nossos cromossomos? Ou é um campo eletromagnético expresso pela atividade elétrica do cérebro? A verdade é que nenhum fisiologista sabe disso, ainda.

Além disso, nosso intestino tem mais células nervosas do que o nosso cérebro! Então, será que pensamos com as tripas?… Bom, alguns parecem que sim, mas a discussão a esse respeito poderia ir longe.

Então, considerando tudo isso, vamos usar o cérebro e parar de agir como papagaios que repetem tudo o que ouvem, mas não fazem a menor ideia do que estão falando.


Referências:

  1. Revista Fapesp – Números em revisão.
  2. Lent, R., Azevedo, F. A. C., Andrade-Moraes, C. H. and Pinto, A. V. O. (2012), How many neurons do you have? Some dogmas of quantitative neuroscience under revision. European Journal of Neuroscience, 35: 1–9. doi: 10.1111/j.1460-9568.2011.07923.x

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