Autor do clássico Moby Dick teria muitas dificuldades para ter seu livro publicado da forma como foi – como um clássico.
Moby Dick - Rogério Pietro

Pode parecer menosprezo aos autores brasileiros, mas não é. Ao contrário disso, esta pequena análise pretende demonstrar como os autores brasileiros precisam vencer obstáculos muito difíceis para verem suas ideias publicadas na forma de livros. O pior deles é a poda da criatividade imposta pelo que podemos chamar de “mecanismo comercial/editorial”. Moby Dick, o clássico mundial da literatura, é um ótimo modelo para entendermos melhor este conceito.

Publicado pela primeira vez em 1851 no Reino Unido, o livro do estadunidense Herman Melville recebeu o título de Moby Dick ou A Baleia. Ele foi lançado em três fascículos, o que não tem nada a ver com a moda das trilogias do Século XXI. No mesmo ano, a obra foi lançada em volume único nos Estados Unidos. Apesar de não ter sido o que chamaríamos hoje de sucesso de vendas, ele é reconhecido como uma das obras literárias mais importantes, e poucas pessoas nunca ouviram falar no nome Moby Dick, por mais que nunca tenham lido o livro. Sua importância é tão grande que até no universo de Jornada nas Estrelas ele é leitura obrigatória na Frota Estelar.

Mais informações, críticas e análises a respeito de Moby Dick podem ser encontradas aos montes na Internet. O objetivo deste estudo não é revisar a obra, mas fazer um pequeno exercício de imaginação para tentar responder à pergunta: como seria se Herman Melville fosse brasileiro e escrevesse a mesma obra nos dias de hoje?

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Capa original da edição americana de Moby Dick ou A Baleia.

A primeira barreira que ele encontraria é o tamanho do livro. A edição americana tinha 635 páginas, enquanto a britânica tinha 927, no total. Por mais que Melville já tivesse feito algum sucesso com um livro anterior (Typee, 1846), ele não conseguiria publicar um livro tão extenso, ao menos não pelos padrões editoriais brasileiros. Por aqui, um autor iniciante ou pouco conhecido é intimado a escrever uma obra que não ultrapasse 200 páginas. O motivo é que um livro muito grande sai mais caro para a editora. Apostando em livros mais curtos, as editoras se arriscam menos. Se ele for um fracasso de vendas, a perda é menor do que se fosse um livro de 600 páginas. Só por esta razão, nosso caro autor Herman Melville já teria bastante dificuldade em publicar sua obra prima.

Mas vamos considerar este cenário e imaginar que algum editor tivesse paciência para ler todo o manuscrito de mais de 500 páginas – porque eles não têm. Podemos prever que o autor seria chamado a encurtar sua obra, cortar capítulos, reescrever quase tudo e eliminar os detalhes e as descrições “cansativas”. Moby Dick seria publicado com algo em torno de 250 páginas, o que é bastante para um autor pouco conhecido. Mas este é o cenário mais otimista de todos. Ele prevê um excelente contato entre Melville e o editor, além de algum padrinho/investidor.

A segunda barreira que a feroz baleia branca enfrentaria é o próprio conteúdo do livro. Herman Melville descreve a pesca baleeira com riqueza de detalhes. Mais do que isso, ele dedica capítulos inteiros para falar das baleias, explicar um pouco da sua biologia desconhecida. Ele cita outros autores clássicos e a própria Bíblia (Jonas) para dar exemplo do quão importante é aquele “peixe” na história do mundo. Em outros momentos, o autor interrompe a narrativa para filosofar em torno de aspectos dos oceanos, dos ventos, dos marinheiros e, claro, das baleias.

Algumas vezes, Melville parece escrever uma peça de teatro, modificando a forma de narrativa para simples (e extensos) diálogos separados por linguagem do tipo “Entra Ahab” ou “[Stubb e Flask, trepados na amurada, passam amarras adicionais nas âncoras que ali pendem.]”.

Tudo isso irritaria até o mais legal editor da nossa Terra Brasilis. Ele alegaria que a obra não é concisa e nem homogênea, ele diria que o leitor poderia se cansar com tantas descrições e que, por isso mesmo, metade dos capítulos precisariam ser retirados. Em outras palavras, daria muito trabalho reformular todo aquele manuscrito, decidir quais capítulos ficariam, quais sairiam. Seria mais fácil reescrever a obra toda como se ela fosse um resumo de si mesma. Neste quesito, nosso caro autor Herman Melville receberia recusas de praticamente todas as editoras brasileiras sérias para as quais ele submeteria seu livro. Mas ele seria chamado a não desistir. As editoras aceitariam avaliar outras obras dele, no futuro, com muito prazer, afinal, aquele tal de Moby Dick tem seu mérito.

A situação de Melville ficaria ainda pior quando os editores locais percebessem um ponto que é considerado fatal, hoje em dia: Moby Dick só aparece no final do livro.

O leitor precisa atravessar mais de quinhentas páginas até a baleia branca, personagem que dá nome ao livro, finalmente surgir. Como assim?! Herman, você não sabe que a problemática de um livro de aventura deve ser apresentada o quanto antes, de preferência nos primeiros 25% da obra? Você acha mesmo que o leitor vai ter paciência de esperar tanto até o encontro derradeiro com o cachalote mais famoso do mundo? Ah, Herman, reescreva isso e coloque Moby Dick logo no começo, afundando um navio baleeiro com descrições dramáticas de ação e terror! Deixe para depois as elucubrações de Ismael, ou melhor, retire todas as elucubrações e passe logo para a perseguição! É isso o que eu acredito que o leitor quer!

Dá até para imaginar o rosto sério e o olhar intelectual de Herman Melville ao escutar críticas como essa, tão comuns em tempos de massificação da arte e de padronização de conceitos guiados por puros interesses de mercado. Ele balançaria a cabeça devagar, daria um suspiro resignado e deixaria o editor falando sozinho, sentado em seu trono, pronto para publicar mais um livro de vampiros e lobisomens e deixar de lado um clássico da literatura mundial.

O que fica claro neste pequeno exercício de imaginação é que Moby Dick não seria publicado se Herman Melville fosse brasileiro e vivesse nos dias de hoje. O mundo teria um clássico a menos.

Algumas pessoas podem alegar que os tempos mudaram, que o leitor de hoje tem outras exigências guiadas pelas novas mídias, como o cinema, a Internet e o videogame. Que seja. Nesse caso, podemos considerar como seria um Moby Dick moderno e nacional. Ele seria escrito da mesma forma? Certamente não. Para atender à demanda editorial de hoje, ele precisaria ser bem mais curto, mais direto, menos descritivo, menos filosófico, menos rico. Precisaria ter uma mulher a bordo do navio Pequod, e ela faria par romântico com o Ismael. Ela seria linda e decidida, independente e simpática. O personagem selvagem Queequeg seria uma excelente opção para ser transformado em garota. A grande baleia branca surgiria logo no começo do livro destruindo tudo. Haveria uma briga e uma separação entre o par romântico, que voltaria aos abraços depois, diante do perigo apresentado pelo cachalote assassino. Pronto! Mais um “blockbuster”.

Em uma palavra, Moby Dick precisaria passar por um processo expressivo de piora. O livro precisaria ser estragado, mastigado, reduzido, reutilizado e reciclado para atender ao padrão editorial brasileiro atual (considerando um Herman Melville nascido, educado e formado no Brasil). No final das contas, teríamos mais um livro de aventura e romance perdido entre tantos outros. E, assim, um clássico seria transformado em um nada.

Então, o que fez de Moby Dick o que ele é enquanto literatura foi a imensa liberdade que Herman Melville teve ao criar sua obra. Quando a criatividade verdadeira de um autor é deixada em paz, maravilhas viram palavras.

Mas será que os editores não mexeram em nada no manuscrito original de Melville? Sim, eles revisaram e modificaram algumas partes, ainda que não seja possível apontar todas elas, porque o original escrito pelo autor se perdeu. Acontece que eles mantiveram tudo aquilo que tornou Moby Dick um livro muito expressivo. A não ser, é claro, na edição britânica, que deixou de fora o desfecho do livro! Os geniais editores ingleses retiraram a parte que conta como o personagem narrador, Ismael, sobrevive. Este foi o motivo para a obra receber algumas críticas negativas, afinal, se o narrador não sobreviveu, ele não poderia contar a história.

Por outro lado, é verdade que muita coisa amadora e repetitiva tem sido escrita e barrada pelos editores. A maioria dos trabalhos enviados às editoras não pode ser publicada. Mesmo assim, muitos poderiam se perguntar onde estão os grandes livros brasileiros que não aparecem nas prateleiras dos lançamentos das livrarias. A resposta mais provável é que estão engavetados na casa dos autores junto das inúmeras cartas de recusas editoriais.

Deixem os escritores criar, e veremos muitos outros clássicos surgindo.