O conceito original de “cena” impede que a palavra seja usada para indicar trechos de livros.

É bastante comum ouvir ou ler a expressão “cena do livro”. No entanto, é importante lembrar que ela passou a ser usada pela geração que cresceu mais vendo televisão do que lendo livros. Assim, criou-se uma analogia incorreta entre as cenas dos filmes e os trechos de romances.

Para entender o motivo pelo qual usar a palavra cena quando estamos falando de livros é incorreta, é necessário entender de onde ela veio. A cena nasceu com o teatro, portanto é uma criação muito antiga. Apesar de podermos retroceder certamente à pré-história da humanidade, o teatro como o conhecemos teve sua origem na Grécia antiga, por volta do século VI a.C. As grandes festas que celebravam Dionísio eram acompanhadas por muito vinho e encenações. Essas encenações precisavam de um local próprio para acontecer, por isso passaram do tablado (altar) ao palco. A arquibancada veio logo depois com a função de organizar o público e garantir que cada vez mais pessoas pudessem assistir à encenação (palavra derivada de cena). Ainda hoje é possível ver e visitar os grandes teatros ao ar livre da Grécia, como o de Herodion, por exemplo, situado em Atenas.

Por essa brevíssima explicação, podemos perceber que o teatro foi a origem da palavra cena. Afinal, a palavra deriva do grego skēnē, que significa “tenda, cabana”, o local onde as peças teatrais eram encenadas. Além disso, o latim também tem essa palavra, escrita como scaena, que significa “palco”. Ou seja, tudo nessa palavra remete ao local onde os atores atuam. Também por isso, a palavra cenário – derivada de cena – remete aos elementos físicos ou virtuais que definem o espaço cênico.

Considerando, portanto, o significado da palavra cena, é possível entender que ela se refere a um espaço físico apropriado para a atuação de personagens. Isso não soa em nada com o trecho de um livro. Porém, quando falamos de teatro, a cena ganha um sentido um pouco mais amplo, afinal ela também significa a subdivisão da ação de uma peça. Ou, de acordo com o Dicionário Houaiss:

“cada uma das unidades de ação de uma peça, que se destacam como tal pela entrada e saída, no palco, dos intérpretes, alterando-se ou não os cenários.”

Com o surgimento da televisão e de todas as tecnologias de entretenimento, o que estava no palco dos teatros passou a acontecer em estúdios. A palavra cena continuou a ser usada para expressar exatamente a mesma coisa que no teatro. Depois ela também passou a ser usada em desenhos animados e animações de computador. Até aqui, o sentido da palavra permite seu uso, afinal existe um palco onde os personagens atuam, seja físico, seja desenhado, seja virtual.

Isso não existe nos romances. A menos que o livro seja uma peça de teatro, que tem cenas, um romance carece de palco físico ou virtual. Os cenários são apenas descrições feitas por palavras e podem, inclusive, ser totalmente dispensados porque o leitor constrói o cenário – se ele existir – em sua mente. Um romance pode ser feito apenas com diálogos. E mesmo que exista um cenário ricamente descrito em um romance, ele ainda assim não se encaixa na definição de cena, já que a cena envolve obrigatoriamente um dos sentidos humanos, que é a visão. A cena é captada pela visão, que envolve um cenário, um palco, um tablado, uma cortina, um desenho de fundo, uma construção virtual. O palco surgiu para que as pessoas pudessem ver o ator, assistir à peça, e o palco, quando é usado, é a cena.

Considerando que o cenário nos romances é criado não pela visão, mas pela imaginação, o uso da palavra cena em livros de romance é incorreto. Não é proibido, mas é certamente errado.

Afinal, doem os ouvidos quando alguém diz que “leu a cena de um livro”.

Livro não tem cena. Livro tem trecho ou passagem. Ponto final.